Ao falar sobre a visita de Nilza, minha amiga
mineira, comentei a questão da ancestralidade da maioria dos brasileiros. A
maior parte do tempo, eu ajo e penso como Rosa Bertoldi II, bisneta de Rosa
Bertoldi, porém tenho um lado brasileiro muito forte. Meu avô materno nasceu na
Bahia. Isso lembra meu rei? João Gilberto canta “eu vim da Bahia...” Eu também?
A família de minha mãe é mineira e hoje encontra-se espalhada por diferentes
estados por conta de seus negócios. Mas, quando Cabral chegou uma rede complexa
de povos indígenas, em estágio neolítico, vivia aqui. Acredito em pelo menos
uns cem grupos linguísticos, dos quais se conhece atualmente o tupi e o
guarani. Diferentes das sociedades organizadas do México e dos Andes, os locais
não possuíam exércitos e aceitaram a colonização e cristianização. O tal
espírito pacífico é bem antigo. Depois vieram os africanos. Da mistura de
brancos, índios e afros surgiram os caboclos e mestiços. No século XIX
juntaram-se aos portugueses, imigrantes de todo mundo, meu bisavô, inclusive.
Quem era Giuseppe... e Rosa?
Meu avô morreu no dia 25 de dezembro de 1943, eu nem
havia nascido. Cresci sem ver a família comemorar a data. Acreditava ser pelo
luto. Não era. Vamos às histórias...
Trieste fica plantada na encosta de uma montanha
imponente de onde se avista o mar Adriático. Seu clima é ameno. Do norte chega
uma brisa leve deixando a cidade constantemente fresca no verão. Esse era o
pano de fundo durante o ano de 1866, quando Franz Joseph uniu a Áustria e o
reino da Hungria transformando o império constitucionalista da família Hasburg
no mais vasto e multiétnico Estado europeu, composto de 13 países e 52 milhões
de habitantes.
Rosa nasceu e viveu em Trieste habitada por 160 mil
pessoas, cujo porto tornara-se o mais importante do império. Seus pais
pertenciam à burguesia local e tinham grandes planos para a jovem de 17 anos, que
nas noites claras de verão deitava-se nas areias mornas da praia sonhando com
um príncipe encantado... Ela bem podia ter-se apaixonado por um marinheiro.
Dessa maneira seria fácil descrever a moça de olhar tristonho chorando pelo
amado no cais. Rosa ficou a ver navios. Um bom começo para a história não é? Ou
então, como na música Gesùbambino: ele vinha sem muita conversa, sem muito
explicar/eu só sei que falava e cheirava e gostava do mar/ele assim como veio
partiu não se sabe pra onde/e deixou minha mãe com o olhar cada dia mais
longe...
Giuseppe morava em Viena, onde o caldeirão da
modernidade fervilhava com movimentos nacionalistas proliferando, ciência e
arte rompendo com vários conceitos numa fragmentação geral. Sigmund Freud,
Gustav Klimt, Oscar Kokoschka e Otto Wagner viviam em conexão direta com a
decadência moral e social, da capital imperial. Mesmo assim ali estava uma
verdadeira usina cultural balançando entre um período de crise aliada a um
nível de produção nunca visto. O jovem,
como todo vienense, possuía a personalidade vazia característica da sociedade
austríaca, que para fugir ao tédio e ao frio dos apartamentos vivia
perambulando de café em café. Giuseppe, como a maioria dos varões de sua
família, entrara para o Exército muito jovem e aos 27 anos era coronel. Estava
em Trieste como comandante do 9º Regimento de Hussardos, sob as ordens do
imperador para investigar todos os aspectos dos serviços e agências militares.
Apesar dessa pesada carga encontrava tempo para
viagens de lazer e expedições de caça, tanto aos animais quanto as beldades da
cidade. Durante um baile aproximou-se de Rosa e a atração entre ambos foi
mutua. No começo eram somente olhares furtivos que depois se transformaram em
frases curtas. Filho mais velho do conde de Chotek, tradicional família de
Praga, embora tivesse entre seus antepassados, os príncipes de Baden e
Liechtenstein, essa bagagem não satisfazia as exigências necessárias para o
moço casar-se com uma prima afastada, a duquesa Maria Cristina, pois a nobreza
dos Chotek vinha através da linhagem feminina.
Rosa e Giuseppe passaram a se encontrar diariamente
no recanto mais bonito e exclusivo da cidade, o Castelo de Miramare, construído
para ser residência do irmão do imperador austríaco, inaugurado no Natal de
1860. Ferdinand Maximilian, especialista em botânica, cuidou pessoalmente da escolha
do local de sua residência, um promontório rochoso de origem calcária dentro de
um parque de 22 hectares com árvores do mundo todo, inclusive cítricas da
América do Sul, daí seu ar impregnado da fragrância de flores de laranjeiras. O
castelo de estilo eclético está rodeado por canteiros de flores e muita grama. O
deserto transformado em um jardim verde e idílico.
Teria o novo Éden inspirado o romance? A ordem
divina para crescer e multiplicar foi levada ao pé da letra. Coisas da Bíblia,
da Torá ou de algum outro livro sagrado. Minha imaginação é fértil, porém não
seria capaz de colocar palavras na boca de Deus!
De tímidos abraços e beijos passaram para
intimidades maiores. Meses depois Rosa estava grávida! Portanto, a Vila acabou
sendo a primeira residência do filho ainda não nascido. Lá a jovem caminhava
por belas veredas na contra mão da vida, livre de códigos e convenções, como
sua contestadora bisneta que vive buscando um mundo baseado no amor, na paz e
na arte para resolver as diferenças ideológicas entre os povos...
Rosa acreditava numa união que não aconteceu, pois
“não é permitido um hebreu se casar com membros de nações pagãs.” Estava
escrito nas estrelas. Brincadeira trata-se do Deuteronômio. Judeus não se
casavam com gentios naquela época. Mesmo hoje Baptista e eu somos uma exceção.
Rosa, mais corajosa que romântica decidiu ter o bebê. Chotek permaneceu ao seu
lado dando ao filho seu nome e sobrenome. Giuseppe, por coincidência, nasceu no
dia 25 de dezembro de 1867.
A vida continuou para todos. Giuseppe pai voltou
para Viena. Rosa desapareceu para reaparecer – irreverente – cento e cinqüenta
anos depois (re)encarnada em uma de suas bisnetas: eu!
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