segunda-feira, 21 de novembro de 2011

“Tudo foi assim, por que tinha que ser, já que assim foi”. (Guimarães Rosa)


Arrumava minhas roupas. Mamãe pediu licença para entrar, estava cheirosa, saíra do banho. Camisola de flanela com flores pequenas e chinelos com arminho à volta. O rosto rosado pelo calor da água, exibia a pele morena e lisinha, sem vincos. Não parecia ter sessenta anos.
Olhei-a inquisitivamente. Sentou-se à beira da cama e acariciava minhas malhas.
- Sentirei sua falta.
- Ah, mãe, não faça isso... vou acabar chorando... eu também vou sentir, acho gostoso estar com vocês, olhe, um momento como este, ... dificilmente terei outra vez.
- Fique.
- Mãe, mãe, é a vida, você também deixou sua casa... vovó sempre fala do quanto chorou, lembra?
- Eram outros tempos, todas as moças se casavam... mas você vai embora sozinha...
Olhava-me, as mãos torcendo-se no colo, angustiada.
- Sabe que já fui cega e muda?
- Você? Que novidade é essa?
- Eu era pequenininha, uns cinco ou seis anos. Jogava bola no quintal e a Ofélia atirou com muita força, para eu pegar. Não segurei e não vi para onde foi. Ofélia, então, disse que caíra dentro da barrica. Corri para lá e sabe o que havia na barrica? Uma ninhada de gatos. Ela fez isso de propósito, sabia quanto medo eu sentia daqueles bichos. É bobagem... mas medos nem sempre são racionais...
Sorria, tímida, envergonhada de seu medo.
- E aí, mamãe? Você assustou com os gatos?
- Eu estendi a mão porque era menor do que a barrica, pensando alcançar a bola e peguei aquela coisa mole e peluda, e a gata pulou no meu braço, foi horrível! Fiquei cega na hora e não conseguia gritar.
- Mãe, que horror! O susto fez com que perdesse a visão por uns instantes?
- Por quase um ano. Eram os anos 20 do século passado, ninguém falava em estados emocionais, psicologia era assunto desconhecido... Os médicos prescreviam colírios, ungüentos e precisei ficar num quarto escuro durante meses. Tenho uma foto usando óculos de cego. Foi terrível.
- Mãe, mãe, está querendo dizer que se eu partir poderá ficar cega novamente?
Ela sorriu, me abraçou, ah! que cheirinho gostoso de mãe! E sussurrou, docemente:
- Vá, meu amor, vim só para desejar que seja feliz, muito feliz. Em todo caso seu quarto ficará exatamente do jeito que é, está bem?

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