quarta-feira, 28 de julho de 2010

A INTIMIDADE E A PALMADA

Olá. Estou de volta.

Gostaria de comentar com vocês um tema que carrega forte pendor jurídico, mas que creio ser de interesse de todos.

Como todos já devem saber, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei bastante polêmico, de autoria da Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), que pretende – segundo o site da própria deputada - “abolir a prática de castigos corporais contra meninos e meninas”, sejam eles praticados sob quaisquer circunstâncias e escusas. Como já alardeado pela mídia, caso aprovada, a Lei poderia ser utilizada como base jurídica para impedir que os pais façam uso das “palmadinhas” como instrumento na orientação de seus rebentos. Muito embora me pareça bastante vaga a efetividade social dessa possível Lei, entendo que antes de mergulharmos em discussões de fundo psicológico e moral é preciso que analisemos o panorama histórico contemporâneo que faz com que inúmeras Leis tenham hoje essa capacidade de elevar os ânimos, justamente por romper as fronteiras da intimidade das famílias.

A mentalidade liberal, típica de fins do século XIX e início do XX, entendia que o Estado deveria manter-se distante da vida cotidiana dos homens, de modo a evitar possíveis abusos do poder estabelecido. Contudo, o próprio desenvolvimento das sociedades terminou por exigir (justamente para evitar o caos) que o Estado agisse, posicionando-se cada vez mais como ente regulador das relações sociais, econômicas e trabalhistas. Mas foi principalmente o ganho de força e legitimidade na esfera internacional das Declarações de Direitos Humanos que deu o empurrão final para que o Direito pudesse decidir acerca do que ocorria do lado de dentro dos lares.

Naquele tempo, a cultura e a moral em voga exigia que o Estado se mantivesse longe dos interesses particulares, enquanto alardeava que o homem, o pai, era o detentor da capacidade decisória da família, com poderes (quase) absolutos dentro das dependências de seu pequeno reino, de seu feudo residencial. Subjugados à ele estavam a esposa e a prole. Todos lhe deviam respeito e fidelidade. E, nessa relação, infinitas barbaridades ocorriam, sempre à distância dos olhos do Estado e com a bênção de uma moral duvidosa. Contudo, a constatação de que esse terreno era bastante fértil para a ocorrência de iniqüidades que fez com que, paulatinamente, os Estados ocidentais fossem afastando a presunção de que “a casa é um asilo inviolável da família”, e de que a intimidade – por mais nefasta que às vezes fosse – estivesse sempre alheia à tutela estatal.

No plano jurídico, dentre os recentes impulsos no sentido de uma horizontalização do poder na família, pode-se citar a Constituição Federal de 1988, que afirma expressamente serem “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (...) exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. No mesmo sentido o atual Código Civil aponta a existência de um “poder familiar”, exercido pelo pai e pela mãe, e não mais um “pátrio poder”, unicamente atributo do homem.

Mas foi definitivamente com a lei Maria da Penha que a sociedade admitiu que a intimidade pode ser desconsiderada no caso de valores maiores e mais nobres (como é a própria dignidade dos indivíduos, sejam homem, mulheres ou crianças) serem colocados a perigo. Afinal, essa Lei busca aumentar o rigor das punições no caso de agressões ocorridas no âmbito familiar.

É neste desenrolar histórico que deve ser inserido e compreendido o projeto da “Lei da palmada”. Afinal, ele é apenas mais uma peça num paulatino movimento de irradiação dos direitos humanos para esferas cada vez mais específicas e particulares das relações humanas.

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