segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Mistério à beiramar VI


- Sou calígrafo.
Esta intervenção de Azevedo nos pegou desprevenidos. Eu tivera a sensação de que o tempo seria meu. Já ouvíramos Baptista com suas memórias, seu doce amor, sua dor e questionamentos. No momento em que pediram que eu contasse sobre mim comecei a organizar meus arquivos para selecionar o que deveria ser contado e agora isso... Voltamo-nos para ele.
- Que maravilha! Sempre fiquei fascinada com aquelas volutas, nem sei se é possível usar “voluta” para aquelas curvas que vocês fazem, mas adoro essa palavra e a definição, que decorei ainda menina: ornato espiralado de um capitel de coluna. Acho isso lindo!
Ambos sorriram ternamente para mim, como dois pais compassivos ante uma menina sapeca.
- É realmente uma bela palavra e nós, calígrafos, usamos volutas, sim. Dedico-me à caligrafia há mais de setenta anos. Hoje tenho pouco a fazer. Acreditam que computadores têm letras cursivas e muito da pompa de convites manuscritos perdeu-se pela praticidade da opção?
- Quando me casei pela primeira vez paguei uma fortuna ao calígrafo, mas achei necessário, dá outra impressão, quer dizer, impressiona mais, não impressão do computador, ou melhor, ah, vocês entenderam, não?
Novamente sorriram.
- Sim, minha querida, entendemos, causa boa impressão a não impressão do convite, coroado pelo capricho de um calígrafo, não é isso? Disse Baptista sorrindo, esquecido de suas dores.
- Chego a despender vinte minutos por convite, você não gastou uma fortuna, Júlia, pagou o preço justo.
- Desculpe-me, sou impetuosa, vou falando e às vezes falo demais. Sabem que esse é meu pior defeito? Segundo minha avó sou estabanada.
- Uma linda e jovem estouvada, de que mais precisamos, Baptista?
- De um jantar condigno – disse, levantando-se – Vamos?
À beiramar comem-se camarões e foi isso que pedimos. Embora tenham afirmado que já não bebiam, acabamos com um Asti em pouco tempo. Contei-lhes de meu insucesso como esposa, dos meus sucessos profissionais, da minha dedicação ao trabalho e da minha estafa.
Azevedo declarou seu amor à arte antiga, contou-nos de suas viagens ao Egito, à Índia e à China, falou de Valentina, sua esposa por cinqüenta anos, das tentativas de encontrar outra companhia após sua morte e da tristeza sentida por não ter tido filhos. Como um jogador que vê a bola vir em sua direção Baptista rebateu. Disse que a maioria das pessoas idealiza os laços entre pais e filhos.
Alguns pares dançavam ao som de orquestras americanas dos anos 1940-1950. Continuamos conversando até por volta de onze horas quando nos despedimos prometendo nos procurarmos no dia seguinte.

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