sábado, 29 de outubro de 2011

Meninos ladrões...

Pedro, e Querido de Deus jogavam e perdiam. Quando a banca fechou e o Gato contou seu lucro devolveu a eles o dinheiro confessando a trapaça na mesa. Era noite e a paz da Bahia encobriu tudo: o campinho onde os meninos treinavam capoeira, os saveiros, as ladeiras estreitas, o puteiro, o grande carrossel e o trapiche, onde dormiam os capitães da areia, os donos do areal e das ruas da cidade, os meninos ladrões. Nem sei se foi assim que começou o filme tamanho era meu deslumbramento. Lembro-me dos pés gravados na praia e de Pedro Bala de repente dentro do mar depositando oferenda a Yemanjá, um abebé para que a rainha do mar contemplasse sua beleza no espelho prateado, naquele 02 de fevereiro. O livro de Jorge Amado foi transformado em uma obra cinematográfica por gente talentosa e criativa, todos baianos, numa homenagem ao centenário do escritor. A sensibilidade colocada no trabalho é tamanha que qualquer um sente o cheiro do acarajé de Yansan. Bahia... de Jorge, de Zélia, de mãe Menininha, de dona Canô, do Sem Pernas, de Pedro e Dora, a Bahia de todos os Santos e nossa também. Às vezes penso na Bahia como um mini Brasil, mas não... ela tem melhor caráter. Essa região recebeu escravos do golfo de Benin, que trouxeram com eles o candomblé confundido com religião, quando na realidade trata-se de uma visão de mundo, herança cultural da diáspora dos yarubas/nagôs. Seus cerimoniais e ritos foram transformados em uma série de seitas como a umbanda, quimbanda, etc, etc. Não sou especialista nem conhecedora profunda desse assunto, daí meu medo em reduzir a interpretação, a um texto capenga e sem fundamento, pois Roger Bastide e Pierre Verger tornaram-se profundos conhecedores dessas culturas. Vou me basear naquilo que consegui apreender do filme, de minha convivência com os baianos durante algumas estadias por lá, da obra literária de Jorge Amado, cujo entendimento parece-me livre do misticismo do branco, do conceito grego, judaico ou cristão, e mais próximo da interpretação francesa. Outros povos criaram visões de mundo baseadas em sistema complexos, como o I Ching dos chineses. Para o povo de Benin, os Orixás, encarnavam os princípios dinâmicos da natureza, reordenados na mente humana/Ori. A palavra orixá é derivada de ori e axé, cujo significado é força, magia. Bonito não é? A magia do pensamento do homem. Dessa filosofia foi tirada a qualidade dialética do equilíbrio e desequilíbrio provocada pela ação humana. Exu, portador da força/magia/axé rompe a ordem, introduz o caos criativo, acentua as contradições entre ele e os outros Orixás: Ogum/trabalho/ciência/luta; Oxum/beleza; Omulu/saúde física e mental; Oxalá/luz, Ossaim/conhecimento.
Essas disfunções estão nas doenças, malefícios ou mortes, sendo resolvidas com os Ebós/oferendas a Exu, modificando a realidade anterior. Tudo que existe de adverso ao homem está personificado na luta entre Orun/céu e Aiyê/terra. Uma das cenas mais bonitas do filme é o transe/possessão presente na roda do encantamento das cerimônias, onde aflora a personalidade do Orixá. Atentem para o detalhe que em nenhum momento eu disse que se trata de um panteão de deuses como os da Grécia, mas na força do pensamento, como diriam Jung ou Freud ou como afirmam os tecnólogos: nossa mente é como um computador podendo ser programada. Seria o pensar positivo solucionando problemas, ou seja, a responsabilidade da condução da vida está por sua conta. Carga pesada? Era na força enorme do inconsciente que o povo Yaruba acreditava daí sua liberdade no amor traduzido em paixão desvendada, em vez de ocultada pelo manto do pecado. Essa herança deixada no novo território, presente no conjunto de trabalhos de Jorge Amado, que os realizadores do filme captaram tão bem, é a Bahia de hoje.

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