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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

E então ela tomou um ônibus.
Não queria ir para determinado lugar, só queria ir. Na rodoviária entrou numa fila, ficou olhando, na tabela atrás do atendente, os nomes das cidades. Não lhe diziam nada, então olhou os preços e resolveu comprar uma passagem de setenta e oito reais.
Jogou-se na poltrona e quando o motorista deu partida ela sentiu uma enorme felicidade. Ninguém sentara ao seu lado, poderia se esparramar. Fechou a cortininha e percebeu que tomara a decisão certa e sem vacilar. Bom sinal, estava ficando decidida.
Queria  fumar. Será que no banheiro havia sensores? Um saco essa história, essa guerra contra os fumantes, cada um opta por sua vida, faz de sua saúde o que quiser. Caminhou para o banheiro e acendeu o cigarro sentindo a boca do estomago. Não aconteceu nada. Inspirou sofregamente a fumaça. Tinha sido uma boa fazer o curso de perfumaria, o spray na bolsa foi aspergido para disfarçar o cigarro. A mulher que passou por ela no corredor seria o tira-teima, se sentisse o cheiro do fumo iria denunciá-la? A mulher voltou, passou  por ela sem olhar. Beleza!
Pela fresta da cortina espiava o poente. Lindo.
Acordou com as vozes alteradas. As luzes estavam acesas, mexeu na cortininha, noite ainda.
- Não interessa, todos têm que sair! Vamos lá, pessoal, não enrolem, têm que sair.
Levantavam-se preguiçosos, alguns agitados querendo argumentar e o policial com a arma erguida – ainda bem,  não apontava para ninguém – só parecia se exibir: “sou a autoridade!” olhando-os de cima a baixo.
- Vamo logo, vamo logo!
O berreiro da criança deixando a todos mais alertas ainda. Sem explicação, sem justificativa... ou ele teria dito algo antes que ela acordasse?
Fazia frio, nenhuma luz à vista, nada de estrelas, nem luar ou nuvens. No meio do nada sem saber por quê.
Um policial de cada lado, armas em riste, guardavam o grupo. Ninguém falava. Ainda bem que a criança calara a boca. Viu-a sugando uma mamadeira. Mãe providencial. Dois outros policiais socavam os bancos, davam chutes nos assentos, cutucavam sacolas. Dois ou três volumes foram jogados para fora do ônibus. Do degrau a autoridade pediu que os donos se aproximassem.
- Abram!
Com a boca do fuzil remexeu nas coisas que se esparramaram pela terra.
- Podem subir. Devagar e calados!
A criança dormia. Ajudaram a mãe a subir, outros, de joelhos, procuravam quinquilharias na poeira para voltarem às sacolas violentadas.
- O que aconteceu? Ela criou coragem de perguntar baixinho ao vizinho da frente, quando a porta foi fechada e já não mais havia risco. Não sabia, estava dormindo.
Com o ônibus em movimento foi até o motorista. Havia recebido sinal para parar. Parara, eles entraram e o resto ela sabia.
Chegaram à cidade no meio da madrugada.
                                                   (Continua na próxima semana)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

fecha

abre os olhos.
deve ter sido o barulho da sirene.
diferente: um som suave, distante, improvável.
a noite imensa presa em seu quarto pesa sobre o rosto.
pensa em se virar. não consegue.
deve ser a preguiça da madrugada.
ou o vinho da noite.
vinho…
nota mental: evitar em noites tristes.
a cama parece mais áspera que antes.
ou seriam os pecados que castigam nas costas?
afinal, rasgam a pele feito chibatadas.
e não tem colchão de molas que dê jeito.
a consciência pesa.
em proporção matemática, o incômodo aumenta.
assim como o barulho da sirene.
olha, vai ser uma noite daquelas.
tenta lembrar o porquê, o onde, o quando.
mas está tudo embaralhado.
fios entrelaçados com boas lembranças, marcas de dores, sorrisos valentes.
deve ser restinho de sonho.
talvez um sonho bom…
vai saber?
pena que não lembra.
tomara que teve beijo na boca, sexo sujo, essas coisas…
até o pescoço dói. 
faz um esforço para virar pro lado e ver as horas.
não deve ser tão tarde assim…
nem lembra de ter ido para a cama.
maldito vinho…
a sirene já virou trilha sonora da noite.
e quando o pescoço termina o movimento, ele vê.
e não entende.
na calçada, pessoas paralisadas.
as mãos às bocas, os olhares, incrédulos.
não, não há lágrimas.
o silêncio ensurdece tanto que as bocas falam, mas ele não ouve.
filme dublado. idioma: terror.
só ouve a sirene.
sente algo escorrer pela barba.
mas a mão não obedece o braço, que não obedece o cérebro.
não consegue se mexer.
a dor aumenta.
mais pecados reclamando a consciência?
sonho bom que não é.
o que escorre pela barba invade a boca.
reconhece o gosto sofisticado do sangue.
dá até saudade do vinho.
a sirene berra.
e chega acompanhada de luzes, que invadem o escuro do quarto.
não entende. 
mas consegue imaginar.
sempre foi bom para pensar em histórias.
desde pequeno.
orgulho da professora de português.
pensa.
não está no quarto. não está deitado na cama. não tem preguiça.
pensa demais. 
queria não ter imaginado.
arrependimento é pecado?
se for, mais uma chicotada nas costas, por favor.
fecha os olhos para abri-los novamente.
quem sabe ainda é o sonho.
quem sabe?
fecha os olhos.
abre os olhos.

fecha os olhos.