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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Tema para um pequeno conto


Era uma segunda feira e estava fora há cinco dias. Cansada. Nada cansa mais do que ficar fora de casa. Desceu do avião, melada, andou com vagar na chuva fina e pegou sua mala. Atravessou o portão para dar de cara com ele. De óculos, boné e revista em punho. Seu disfarce padrão mesmo às 21h de uma noite chuvosa. Sentiu um frio na espinha. Ele não dirige e nunca havia se dado ao trabalho de levá-la ou pegá-la no aeroporto a não ser que também embarcasse.
Caminhou com aparente calma até ele e beijou seus lábios de leve. Ele pegou sua mala e foram a procura de um taxi.
- O que aconteceu? Ela perguntou assim que fechou a porta do taxi.
Silêncio.
- Fala. O que aconteceu?
Ele tirou o boné e a olhou nos olhos.
- Acho que amo você.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Elipse

Ele sabia que era absolutamente impossível. Quando se conheceram ela já morava com um cara. Músico, inclusive. Desses que viajam com a banda e traem as namoradas. Mas era bem apessoado. E talentoso, diziam. Ele não era músico e não viajava e também não traia a namorada. Era contador e estava noivo há seis anos quando a conheceu. Ela era o exato oposto de sua noiva. Cosmopolita, extrovertida, inteligente, diziam. Ele não sabia ao certo que o pensava dela. Só tinha curiosidade. Ela era uma dessas pessoas que sorriam e abraçavam com o corpo todo e não só os braços e invariavelmente isso o deixava constrangido. E excitado. Não sabia se era a proximidade, o calor, o cheiro do cabelo ou o fato de que quando abraçava, tocava de relance seu pescoço. Arrepiava. Todas as vezes. E sempre tinha a impressão que ela percebia. Ela era cliente em seus escritório e o começo de ano sempre queria dizer que ela apareceria para fechar seu imposto de renda. Ganhava bem. Gastava muito. Com o namorado vagabundo, ele tinha certeza. No último encontro após o abraço deixou cair uma pasta e voaram notinhas de papel térmico. Ela sorriu e ajudou a resgatá-las. Após a reunião pediu demissão. Não podia continuar vivendo assim.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

fecha

abre os olhos.
deve ter sido o barulho da sirene.
diferente: um som suave, distante, improvável.
a noite imensa presa em seu quarto pesa sobre o rosto.
pensa em se virar. não consegue.
deve ser a preguiça da madrugada.
ou o vinho da noite.
vinho…
nota mental: evitar em noites tristes.
a cama parece mais áspera que antes.
ou seriam os pecados que castigam nas costas?
afinal, rasgam a pele feito chibatadas.
e não tem colchão de molas que dê jeito.
a consciência pesa.
em proporção matemática, o incômodo aumenta.
assim como o barulho da sirene.
olha, vai ser uma noite daquelas.
tenta lembrar o porquê, o onde, o quando.
mas está tudo embaralhado.
fios entrelaçados com boas lembranças, marcas de dores, sorrisos valentes.
deve ser restinho de sonho.
talvez um sonho bom…
vai saber?
pena que não lembra.
tomara que teve beijo na boca, sexo sujo, essas coisas…
até o pescoço dói. 
faz um esforço para virar pro lado e ver as horas.
não deve ser tão tarde assim…
nem lembra de ter ido para a cama.
maldito vinho…
a sirene já virou trilha sonora da noite.
e quando o pescoço termina o movimento, ele vê.
e não entende.
na calçada, pessoas paralisadas.
as mãos às bocas, os olhares, incrédulos.
não, não há lágrimas.
o silêncio ensurdece tanto que as bocas falam, mas ele não ouve.
filme dublado. idioma: terror.
só ouve a sirene.
sente algo escorrer pela barba.
mas a mão não obedece o braço, que não obedece o cérebro.
não consegue se mexer.
a dor aumenta.
mais pecados reclamando a consciência?
sonho bom que não é.
o que escorre pela barba invade a boca.
reconhece o gosto sofisticado do sangue.
dá até saudade do vinho.
a sirene berra.
e chega acompanhada de luzes, que invadem o escuro do quarto.
não entende. 
mas consegue imaginar.
sempre foi bom para pensar em histórias.
desde pequeno.
orgulho da professora de português.
pensa.
não está no quarto. não está deitado na cama. não tem preguiça.
pensa demais. 
queria não ter imaginado.
arrependimento é pecado?
se for, mais uma chicotada nas costas, por favor.
fecha os olhos para abri-los novamente.
quem sabe ainda é o sonho.
quem sabe?
fecha os olhos.
abre os olhos.

fecha os olhos.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

ruas

o papel amassado pelo tempo marcava: "rua das angústias".
letras garrafais. parecia coisa importante.
ele não lembrava de nada.
mas fez questão de acordar cedo.
o all-star preto estava ao lado da cama, cadarço novo.
nada de tropeços dessa vez.
o banho foi rápido, a encarada no espelho demorou mais.
parecia saber quem era. e o que tinha de fazer.
calça rasgada, camiseta preta, all-star, chave no bolso.
não, não precisa levar celular. não tem pra quem ou por que ligar.
15 minutos de caminhada. para aquecer as pernas.
talvez a alma.
pensava no que poderia encontrar, no que iria falar e em outros condicionais que a vida impõe em passeios como esse.
passeio que ele não sabe ainda se gosta. mas que repete anualmente. 
tradição. promessa. hábito.
pior que fumar mentolado.
mas segue. passos largos, fortes, marcados.
o coração aperta. falta uma quadra.
chega.
tem muita gente.
todos apressados. por dentro, assustados.
todos olhando para os lados. todos ignorando todos.
alguns até a si mesmos.
nada é falado. não há música ambiente, nem nos fones de ouvido.
parece não haver vida.
só rituais mecânicos. engrenagens silenciosas em funcionamento.
pernas e braços e pescoços e piscadelas num ritual messiânico. 
exaustivamente repetitivo. incrivelmente espontâneo.
balé e bailarinos.
todos filhos e netos da mesma dor com o mesmo pecado.
casalzinho sem-vergonha pra caralho.
tão semelhantes. tão similares. tão tais.
e ele assiste a tudo.
rei do camarote.
o coração aperta até a primeira lágrima cair.
é hora de dar meia volta.
antes que seja tarde.
antes, tira outro papel do bolso.
outro pedaço sujo, também maltratado pelo tempo.
ou maltratado por qualquer outra coisa.
tem dificuldade para ler as letras tristes, miúdas.
aperta os olhos, marejados por completo a esta hora.
"rua da saudade".
suspira.

amanhã, a caminhada é mais longa.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

(des)encontro

sai do banho com pressa.
esfrega grosseiramente a toalha no corpo nu, ainda molhado, recém-libertado das preocupações mundanas.
está atrasada.
senta em frente à penteadeira de princesa – presente-herança da avó.
ah, vó… tinha o cheiro de lavanda…
não, para! tenha foco, mulher!
põe o brinco preferido, comprado do hippie da pracinha, de pedra preciosa.
só disfarça uma maquiagem pelo rosto, ainda tem luz no dia lá fora.
desfila o batom vermelho pela boca carnuda, que agora deixa evidente o brilho das más intenções.
uma segunda demão – só por garantia…
vigiada pelo espelho, pega a calcinha nova escondida no fundo da gaveta.
guardada para um momento especial.
e especial, hoje, é prato do dia.
o vestido florido escorrega pelo corpo – parece abraçar as curvas, lamber as coxas, apertar os seios miúdos.
ela geme. e sorri.
o perfume, este atrevido, ataca o pescoço. tarado, invade os pulsos.
marca território. bom menino.
nada nos pés. quer saber do chão para reconhecer o exato momento em que começar a voar.
dia especial, lembra?
abre a porta da sacada. está quase na hora.
dá tempo de tomar um copo de água.
não quer engasgar. quer, de uma vez por todas, falar o que sente. 
feito tabelinha com o sócrates – tocou, recebeu.
de volta à sacada, a ansiedade arranha o coração.
foco, mulher!
olha pra baixo. vê aquela gente indo pra casa, fim de labuta.
muitos deles voltando para seus amores.
muitos deles pensando em seus amores.
muitos deles desejando novos amores.
mas ela, não.
ela sabe o que quer.
mulher moderna. mulher fodona.
de repente, sente.
é agora. chegou a hora.
lentamente, levanta a cabeça. inclina o corpo, deixa levemente o colo aberto, seios quase se revelando feito fotografia à moda antiga.
queria fazer tipo, mas já escapava o sorriso, malandro que só.
fácil, fácil. que vergonha, vó…
já se sente na ponta dos pés.
levanta os olhos.
e vê.
sempre esteve ali.
quente, parecendo louco de desejo.
cheio de brilho, feito nova paixão.
tão próximo, como sonho bom.
recebe a ordem cerebral para dizer “eu te amo”. abre a boca avermelhada para obedecer, boa moça que é.
tarde demais.
ele ensaia o adeus – dois pra lá, dois pra cá.
fica menor. e menor. e menor.
pés no chão.
no horizonte, só aquele cheiro de despedida entre a trilha de migalhas deixadas pelo brilho, já um tanto opaco.
tudo bem. 
amanhã tem pôr-do-sol de novo.

e ela comprou um par de botas na promoção do shopping.