quarta-feira, 8 de julho de 2009

Fugas desejadas

Numa passagem de seu poema “O haver”, Vinícius de Moraes menciona um certo sentimento de “angústia pela simultaneidade do tempo”. Tenho para mim que esta angústia atinge muitos de nós em algum momento da vida. A noção de que podemos ser apenas um, único, com prazo de validade dentro deste invólucro corpóreo, pode ser visto como algo ultrage, dada a existência de inúmeros “eus” dentro de nossas cabeças, cada um destes com uma vida possível, um heterônimo em potencial. Nuances esquizofrênicas à parte, considero esta angústia um dos motores dos que, por ofício ou hobby, criam vidas, dores e amores, no papel ou na tela do computador.

Se para os pretensos literatos e escritores esta não aceitação da individualidade absoluta acaba sendo uma alavanca, para muitos outros pode ser um tormento capaz de rupturas de socialidade geradoras de atos extremos. Valho-me aqui (uma vez que não tenho pretensões psicanalíticas) de uma crônica de Contardo Calligaris publicada em 2004 no jornal Folha de São Paulo e que está na coletânea “Quinta Coluna”, da Publifolha, livro que reúne 101 de suas crônicas publicadas ao longo de vários anos. Na referida crônica, o escritor e psicanalista discorre sobre o imenso número de ‘missing persons’ mundo afora. Calligaris tece comentários sobre este fenômeno que, seja pela globalização, seja pelo novo mal du siècle conhecido por depressão e demais transtornos psíquicos, ou mesmo pelo tráfico de órgãos, não pára de crescer, ano após ano. Um dos apontamentos feitos pelo autor é que, por mais que tendamos a associar os desaparecidos com pessoas que foram subtraídas de seu local de origem contra sua vontade – rapto, trafico de órgãos ou morte violenta -, muitos destes desaparecidos o fazem de modo voluntário, direta ou indiretamente. Um belo dia, essas pessoas, cansadas de suas vidas – de suas famílias, de suas dores, de sua história, enfim, de sua biografia -, simplesmente põem o pé na estrada para nunca mais voltarem.

Atire a primeira pedra quem nunca imaginou como sua vida teria sido diferente se tivessem virado a esquina, ao invés de seguirem reto. Até os mais satisfeitos com suas histórias, vez ou outra, acabam por enfrentar tais pensamentos (ou não?). O problema fundamental que daí se nos apresenta é que o barco que pensamos abandonar não é a vida dos outros, mas a nossa própria. Afinal, nossas vidas – de cada um de nós – são esse moto contínuo de nossa existência, feita por nossas mãos, pensamentos e relações. Nossa vida somos nós mesmos. E não podemos fugir facilmente de nós mesmos.

O cinema, algumas vezes, trouxe-nos boas histórias de pessoas que, diante das circunstâncias da vida, diante de fraquezas, suas e dos outros, acabam por preferir um rumo novo, um novo começo, um novo ‘si mesmo’. Dentre estas, gostaria de indicar-lhes duas, tocantes mas diferentes, e que nos auxiliam a entender essa desnecessidade que algumas pessoas podem ter de nós. O primeiro se chama “Na natureza selvagem”, ou ‘Into the wild’ no original em inglês. A história, real, tornou-se filme pelas mãos de Sean Penn, o qual gravou o roteiro de um livro homônimo. Maiores detalhes são desnecessários, bastando que se diga que o filme, caso visto por essa ótica da compreensão dos que caem no mundo, é uma obra prima (na minha humildíssima opinião). Outro filme é o clássico ‘Seu único pecado’, de 1940. Na história, um honesto bancário acaba sendo ludibriado em circunstâncias pouco honrosas e, diante da vergonha do ocorrido, troca sua identidade com um homem acidentado na estrada. A cena em que o personagem principal revê sua família na noite de natal (sem ser visto) é um clássico do cinemão americano recém dotado de áudio.

No que diz respeito ao desejo de se viver as vidas possíveis, ainda que improváveis, pode ser que encontremos alguma explicação na própria mitologia. Em seu livro “O herói de mil faces”, o estudioso americano da mitologia e religião comparadas Joseph Campbell afirma haver uma estrutura arquetípica padrão em quase todas as mitologias heróicas do mundo (e que estaria presente em nossos inconscientes), a qual se manifesta num movimento de abandono da situação de conforto inicial, busca de um autoconhecimento (ou realização de uma façanha), e retorno para a origem. Ao pensarmos que vivemos num mundo cada vez mais óbvio, em que, ao contrário do que imaginamos, nossa liberdade é cada vez mais castrada pelos mercados e pela sociedade, talvez compreendamos que o único que os nossos desaparecidos voluntários desejam é ser heróis de suas próprias vidas.

6 comentários:

Mariana Sotero disse...

Mto bom, como sempre! Parabéns!

Rosa Leda disse...

TMA, nesta reflexão, nos convida a uma investigação no poço escuro de nosso próprio eu (eus???)de forma instigante: "Até os mais satisfeitos com suas histórias, vez ou outra, acabam por enfrentar tais pensamentos (ou não?)."
Também com o neologismo desnecessidade que os outros têm de nós. Parabéns, boy!

mourinoul disse...

Parabéns e valeu as indicações.
mas, quem é vc mesmo? quem sou eu?
hehehe
deixo mais uma indicação nacional. "O Ébrio" - Vicente Celestino

abração

Marta Mandelli disse...

"(...) talvez compreendamos que o único que os nossos desaparecidos voluntários desejam é ser heróis de suas próprias vidas."
Deixando a psicanálise de lado, como vc bem disse, quem não deseja ser herói da própria vida? Se a vida que o sujeito leva não é a vida que ele gostaria de ter, por que não "desaparecer"?.... E se Campbell estiver correto, e em nosso inconsciente houver estruturas arquetípicas heróicas, a análise feita por Calligaris se torna ainda mais real, já que vivemos um momento na história de despersonalização do sujeito.

Gostei especialmente quando vc diz que nossa liberdade é cada vez mais castrada, e essa ainda vai ser uma boa discussão entre nós.

Calligaris é também um excelente antropólogo e existencialista, e recomendo "Terra de Ninguém".

Bjs

Janaina Fainer disse...

Cada vez que vejo Na natureza selvagem tenho mais gana de sumir no mundo sem cartão de crédito, sem identidade, só vivendo
escrevi um post sobre esse filme há um tempo
http://setegrausdeseparacao.blogspot.com/2008_11_01_archive.html
bjs

Unknown disse...

T. M. A.

Parabéns pela profundidade. o que é raro nos nossos dias marcados pela superficialidade.