quarta-feira, 1 de julho de 2009

Dona Maria

O fato ora narrado aconteceu em junho de 2003, num princípio de inverno úmido e frio, na cidade de Buenos Aires. Residia eu como estudante, com visto de estudante, espírito de estudante e um algo mais que todos carregamos todo tempo, não importa a classificação dos burocratas da imigração.
Todos os dia, após um almoço cuja máxima variação era o grau de charco da milanesa e o ímpeto da pimenta do reino do purê de ‘papas’, tomava a linha verde do metrô, que liga o norte da cidade ao chamado ‘microcentro’. O ponto de destino chamava – e ainda se chama – Faculdad de Medicina, próximo à confluência das ruas Paraguay e Junin, local das aulas diárias. Estas, de aproximadamente três horas ininterruptas eram prazerosas, mais pelo afã dos professores – jovens e cheio de vontade de exibir sua cultura – do que pelo conteúdo. Afinal, todos sabemos que o grande professor de idiomas sempre foi e será a rua, a noite, a vontade de se comunicar e a condição de estrangeiro, ávido de compreensão daquilo que lhe cerque.
A tarde após as classes seguia como não poderia deixar de ser, com vagares intermináveis pelas ruas, cafés e sob a arquitetura de uma cidade que, por algum motivo mais antropológico que social, sempre quis ser a representante da belle epóque na América do sul, não tendo podido sê-lo por muito tempo.
Ao fim do dia, já com os pés cansados de caminhar, os olhos embotados de tanta diferença de nossos trópicos tupis, e a língua calejada de pronunciar “erres” aspirados, tomava eu o rumo de volta. Devido ao horário – sempre posterior ao término das atividades do transporte coletivo – o retorno era uma longa e benfazeja caminhada até a Plaza Itália, no bairro de Palermo, onde ficava o albergue onde passava as noites.
Foi num destes percursos noturnos que eu a conheci. O primeiro contato foi nada mais que um pedido de esmola:
- Uma monedita por favor!
A primeira reação – a mais convencional possível – não passou de um menear de cabeça, indicando a negação a todo pedido possível naquela situação. Todavia, o espírito santo que creio tutelar as mentes de alguns andantes mundo afora soprou em meu ouvido.
Ao atingir o fim do quarteirão, por algum motivo externo, qualquer coisa que não estava em mim, voltei o olhar e vi, sentada na calçada de uma agencia fechada e imundado Citibank, ela, quem soube posteriormente chamar-se dona Maria.
Voltei o corpo e até ela caminhei. Minha primeira pergunta, no idioma local e talvez após segundos de hesitação foi:
- O que alguém como a senhora faz aqui, uma hora dessas?
A resposta fora um misto de indignação – não sei se pela pergunta ou se pela consciência de sua própria condição:
- Estou aqui por culpa do neoliberalismo, e do presidente que vendeu este país, desrespeitou os velhos e pôs tudo a perder.
Não lembro exatamente o desenrolar imediato do ocorrido. O que sei é que após alguns instantes eu estava sentado ao seu lado, ouvindo um depoimento sincero de uma vítima da bancarrota do país mais próspero da América do Sul até meados do século XX.
Se me é permitida qualquer análise do que ouvi nos instantes seguintes, posso dizer que foi um relato lúcido, fundamentado e extremamente culto de alguém que viveu, por décadas, do sistema de previdência que a Argentina sustentou por anos e anos. Os detalhes da história são, inevitavelmente, detalhes. O que lhes posso afirmar de forma direta é que, nunca, neste período até aqui despendido por mim neste planetinha azul, havia tido a oportunidade de ver e ouvir uma história tão triste, seja por suas nuances políticas, seja pela incongruência em si, haja vista o fato de a mencionada dama falar cinco idiomas, ouvidos e reconhecidos por mim.
Como acho que não poderia deixar de ser, desde de então, no período de dois meses em que fiquei na cidade de Buenos Aires, diariamente eu ali sentava, ao seu lado, e ouvia histórias, de viagens pelo mundo – cujas fotos comprobatória pude ver – e de tragédias pessoais. Ao fim e ao cabo afirmo que foi ali, naquela calçada, que descobri que a tragédia, no sentido de percalços que atingem, e destroem – ao mesmo tempo que enriquecem – a alma humana, podem acontecer com qualquer um de nós.
Fui-me de Buenos Aires no início de agosto.
Em julho de 2005 pude, uma vez mais, visitar a cidade. Em outras condições financeiras, lá estive com meu pai e um primo querido. Numa madrugada de quinta-feira, após algumas garrafas de vinho, tomamos um taxi. Sorrateiramente pedi ao motorista que tomasse o rumo pela Avenida Santa Fé. E lá, em frente à agência do Citibank, encontrei novamente Dona Maria, e a ela apresentei meu pai e meu primo, aos quais havia, muito antes, contado essa história.
Meu mai faleceu em 4 de abril de 2009. E independente de toda vida possível que a morte leva, sei que pude mostrar a ele um pedaço de mim e do mundo que talvez ele não conhecesse. Pude perceber, uma vez mais, e ao lado de minha família que a vida é realmente a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida. E sei que tanto Dona Maria quanto eu pudemos ser testemunhas das vidas um do outro, ainda que por um curto pedaço de tempo.

4 comentários:

Rosa Leda disse...

Fiquei presa às suas palavras do começo ao fim. Só uma pessoa com riqueza interior teria mantido essas conversas. Parabéns, boy!

Janaina Fainer disse...

dificuldade de escolher assunto?
hum, sei sei
lindo texto
bjsssssssss

Rosa Bertoldi disse...

Menino, você é ótimo!!!!!!!!!
Parabéns.
Rosa, a Bertoldi

Grace... disse...

Thi......claro que (como sempre!) adorei o que vc escreveu...... Fiquei aqui tentando construir as cenas na minha imaginação!!! Lamentei muito o final.... não sabia do falecimento do seu pai.... Lamentei ainda não tê-la encontrado qdo estive por lá..... Procurei muuuuuito..... Muitas idas e vindas pela Sta Fé...... adoraria tê-la conhecido; adoraria ter podido compartilhar com ela as tantas boas impressões a seu respeito.....
Feliz por poder ler você de novo!!!
Queridíssimo!!!!!