segunda-feira, 6 de julho de 2009

SEM RAÍZES


Só à noite, já deitada, naquele tempinho antes de o sono chegar, quando esfregava um pé no outro e os sentia lisinhos é que sossegava. Logo depois dormia relaxada.
Não contava a ninguém mas tinha medo. Perceber seus pés lisos era reconfortante. Temia criar raízes.

Criança quieta de uma família enorme, pudera observar tios e tias, primos mais velhos e namorados que vinham e iam. Todos comentavam seu olhar sério mas não queria ser séria, se pudesse escolheria ser alegre.

Percebera, naqueles tempos, que alguns de seus tios eram gostosos outros não. Uns riam, faziam mágicas, traziam brinquedos simples, comprados de camelôs, nas calçadas, adoravam cócegas e pegavam as crianças no colo. Outros, aqueles que traziam os presentes em pacotes bonitos, usavam roupas mais lisas, não riam tanto, costumavam discutir e às vezes saíam bravos. A criança séria ficava pensando nisso.

Os tios gostosos falavam bobagens, perguntavam de namorado, riam quando arrotavam e ensinaram toda a criançada a soltar pum no sovaco. Os tios tristes diziam que precisavam estudar e que era cedo para pensarem em certos assuntos.

Cresceu tentando compreender o que os fazia tão diferentes.

Ficou impressionada ao ler, em Cem Anos de Solidão, a cena em que um dos Buendia, esquecido ao ar livre, ficara enraizado e não pudera mais ser removido.

Bem mais tarde, quando leu O Jogo de Amarelinha, do Júlio Cortazar, percebeu um vestígio de explicação ao ler:“andava pela cidade como folha seca empurrada pelo vento”. Era isso! A folha, totalmente livre, solta, ia de um lugar para outro, para onde o vento soprasse. Os tios alegre eram soltos, os tristes eram amarrados!

Queria ser folha seca tocada pelo vento.

Livre, não louca. Solta. Solta para vestir o que quisesse, comer o que quisesse e amar quem quisesse, para largar um emprego e buscar outro caminho.
Loucura, disseram os amigos. Não se sentia louca. Só não queria criar raízes.
Qual a vantagem de ser estável, enraizada?

Estava perdida mas não insone.
À noite, quando percebia as solas dos pés lisinhas sabia que não havia criado raízes.

6 comentários:

Rosa Bertoldi disse...

Rosa Leda
Parabéns!!!!!!!
Eu também nunca criei raízes, isso é tão bom! Mesmo meus pés não sendo tão lisinhos e precisando vez ou outra das mágicas mãos de Sônia, minha manicure há mais de 15anos para ficarem no ponto.

Janaina Fainer disse...

ótimo texto e linda foto
bjs

... disse...

Rosa, fiz a correção pelo administrador pq vc havia postado no domingo, OK?
bjs

Thiago Azevedo disse...

Adorei o texto....mas percebi que eu faco uma forca danada pra conseguir ser solto... e na maioria das vezes nao consigo. That's life...

Anônimo disse...

Este texto de Rosa Leda é um pouco do inventário da vida, se a morte começa pelos pés.
Depois de lê-lo, pensei nos
inventariantes, eles, por certo, pedirão conta dos meus pés. Pés estragados ao deixarem de ser lisos; dedos enraizados nos espaços perdidos.
Pedirão conta dos pés com formas lisas, esfregados dentro de mim,
com assombrações, mas também com coragem
Pedirão conta das caminhadas com o sopro da inocência.
Perguntarão porque meus pés foram raros caminhantes, dos sons dos pés na sala do piano que ficaram dentro de mim...
Responderei apenas que a vida estável eu sempre confundi com estar na vida, e pouco pensei que toda a vida está nos pés, mesmo nos pés enraizados.

Rosa Leda disse...

Maravilhosos comentários que me impulsionam e desenraizam...pés com formas lisas esfregados dentro de mim!