quarta-feira, 15 de julho de 2009

Os insurgentes e a polifonia urbana

Considero-me um leigo em matéria de crítica artística. Contudo, a falta de conhecimento ‘formal’ sobre determinado assunto jamais me fez deixar de palpitar diletantemente sobre um pouco de tudo que há no mundo. E é com esta ousadia dos amadores que digo que tive, dia desses, contato com uma intervenção urbana que conseguiu de mim o que muita obra de arte ‘de verdade’ não conseguiu: o mais sincero espanto. Tratava-se da amplamente noticiada instalação, no canteiro central da Avenida Nações Unidas, em Bauru, de vários cabides com roupas em bom estado de conservação, limpas e passadas, acompanhadas de um cartaz onde se lia: “Ajude se puder. Retire se precisar”. Mesmo com o posterior aparecimento dos “responsáveis”, minha reflexão não cessou, tendo persistido um eco que agora me proponho a dividir com os eventuais leitores.
Tenho para mim que um dos atributos da verdadeira obra de arte é a dificuldade de se reduzi-la a um denominador comum. A obra de arte bem sucedida – ou seja, a que atinge o espectador – causa uma reação em cadeia de pensamentos, e isso somente pode ser (re)expressada por meio da linguagem poética, sendo a narração linear – própria do texto jornalístico ou documental – pobre e incapaz da transmissão de sensações. Por tal motivo se dá essa nossa dificuldade em interpretar as ‘intenções’ do artista. A obra de arte não necessariamente é ideológica (o que até poderia facilitar sua interpretação) e, por isso, não está sujeita a uma única compreensão, não havendo uma dicotomia entre certo e errado nas sensações da arte. Uma vez instalada (pintada, construída, redigida) ela se torna propriedade do éter universal, cabendo a cada um de seus espectadores, leitores ou ouvintes sua compreensão.
A plurissignificação da arte bem como sua natureza insurgente são também responsáveis pelo mal estar que a obra muitas vezes causa no poder estabelecido, como se pôde ver no caso ocorrido na cidade de Bauru. Perguntado sobre o destino das roupas encontradas na área verde, o Secretário Municipal do Meio Ambiente Valcirlei Gonçalves afirmou não ter tal informação, aduzindo que a instalação de qualquer objeto, placa ou publicidade nas áreas verdes da cidade precisam ser previamente autorizadas pelo poder público, o que no caso não teria acontecido. Para que tal intervenção tivesse sido ‘legal’, portanto, uma série de percalços burocráticos deveriam ter sido superados, como a apresentação de um projeto à secretaria da cultura e meio ambiente, a identificação dos artistas, e uma ‘sinopse’ dos objetivos da obra, além de um croqui da instalação. Só faltava pedirem um laudo dos Bombeiros. Em resumo, a obra de arte (considerada como a exortação à sensibilidade) e o Estado (considerado como o império da razão) são imiscíveis. Onde um estiver, o outro não estará.
A idéia de legalidade (conceito chave para a compreensão desta incompatibilidade entre a arte e o Estado) pressupõe uma univocidade que é totalmente inexistente em qualquer palavra ou frase. O exemplo da palavra ‘manga’ é auto-explicável: não sabemos se se está a falar de uma parte da roupa ou do fruto de uma árvore. Não obstante, a univocidade é o grande objetivo da lei, tenha esta lei o condão de impedir que os homens se matem uns aos outros, tenha a lei o único objetivo de impedir que pessoas agridam a natureza pendurando coisas em áreas verdes públicas. Não há previsão legal para a instalação de obras de arte com o objetivo de impactar a mente dos transeuntes. E aí reside a incompatibilidade: o Estado é a tentativa de redução das contingências pela previsão legal dos atos (univocidade), enquanto a arte tem que ser um choque inesperado (plurissignificação).
Todavia, muito embora possamos identificar os motivos da dificuldade de convivência entre o Estado e a arte, não podemos esquecer que a interpretação da lei sem que se tenha em mente o indivíduo e a sociedade pode causar desgraças. Basta lembrarmos das afirmações de Adolf Eichmann quando de seu julgamento em Jerusalém no ano de 1961, quando sustentou, todo tempo, que não poderia ser punido por seus atos, uma vez que apenas teria realizado o que a lei alemã lhe ordenava que fosse feito.
Parabéns aos insurgentes de Bauru.

2 comentários:

mourinoul disse...

Venho dizer que achei essa intervenção muito boa tb. A frase da placa ja resumiu toda a obra (ja apresentou o denominador comum).
A intervenção urbana é o meio mais rápido de se atingir o públíco, que muitas vezes não espera por isso mesmo, e como se sabe, carece de arte.
Só lembrando, uma vez pintaram umas pedras perto de onde estava este varal, como se fosse uma joaninha, ficou por anos e anos, se o estado estivesse incomodado com aquilo teria pintado a pedra logo.
Parabéns TMA

Rosa Bertoldi disse...

Eu também acredito que a intervenção seja o caminho mais rápido para se chegar ao público. Mas, o que você esperava da nossa Secretaria de Cultura e sua equipe mal preparada? Que eles entendenssem a brincadeira? Afinal uma das características desse tipo de arte é ser lúdica. E bom humor não me parece ser o forte deles, nem sensibilidade e possivelmente nem inteligência emocional. Por que você acha que judia de sangue e religião procuro um padre católico para filosofar?
Li seu comentário sobre meu post.
Rosa Bertoldi II