quarta-feira, 31 de março de 2010

Do JC

31/03/2010
Valei-me, meu Padim Ciço!

“Aqueles que foram vistos dançando acabaram julgados insanos pelos que não escutaram a música.” Parafraseando Nietzsche, eu diria: quem acreditou no milagre foi considerado louco... Embora Padre Cícero tenha sido beatificado em 1977, só ouvi falar dele em 1980, em visita ao Recife, para encontrar-me com Cícero Dias.

Padim Ciço era meu padrinho. Sem acreditar na história, fui conferir. Verdade, Dias teve como testemunha de batismo o homem louro de olhos azuis, descrito pelos fieis como Cristo ressuscitado. Descobri, também, que metade das crianças nordestinas possuiam seu apadrinhamento. “Nesta semana, recebi vinte assentos de batizados e apenas dez mil-réis, sendo que de dez meninos foi o Cícero patrono - e nada pagou” lamuriava-se padre Alexandrino ao bispo.

Pouco sabia sobre Cícero Romão Batista assim como nada conhecia sobre a vida de Joseph Ratzinger. Comecei a pensar em acaso e na sua presença no cotidiano da humanidade, para explicar a relação entre os Cíceros nordestinos, Ratzinger e a antiga Inquisição Romana, hoje Doutrina da Fé. A visão que tenho dele - um sacerdote moralizador e austero que deu alento à comunidade pobre do sertão - é a mesma de seu afilhado pintor, um homem culto que viveu na Paris das luzes, e ao mesmo tempo, carregava consigo a bagagem cultural e religiosa de sua região. Alguém se encarregou de falar-me dos boatos sobre como o padre nasceu pobre e morreu rico tendo pactuado até com Lampião. Onde estaria a verdade? Talvez nos arquivos do cardeal, pois o nordestino confrontou-se com o Santo Oficio em duas ocasiões.

Tudo começou ao dar a hóstia para Maria de Araújo. Ela sangrou na boca da mulher. O fato ocorreu diversas vezes, então pediram uma comissão para averiguar o caso. Por dois anos o grupo, formado por dois teólogos, dois médicos e um farmacêutico, analisou a história deduzindo que não havia explicação natural para a ocorrência. Só podia ser milagre. Contra as evidências foram classificados de insanos. Uma comitiva, formada pelo bispo local, esteve em Juazeiro, com Maria, por três dias. Conclusão: embuste. O capelão acabou excomungado, mesmo tendo visitado o Vaticano para se explicar. A mulher afastada de Juazeiro permaneceu enclausurada. Parece que o bispo do Ceará não ouviu a música... “Podiam estar revidando por causa dos conflitos com seus superiores,” diria o pintor. É provável... Havia até uma circular do bispo de Olinda, dom Luís de Brito, para sacerdotes da região recomendando que “não aceitem para batismo o nome Cícero, sinal de arraigado fanatismo.”

Em 2001, Padre Cícero foi eleito o cearense do século XX. Nesse momento, Ratzinger, presidente da Doutrina da Fé, tinha nas mãos o seu processo de reabilitação. Não se sabe o veredicto, pois logo depois foi eleito chefe da Igreja Católica. De novo o Abraão da caatinga ficou frente a frente com um papa. Primeiro era Leão XIII e agora Bento XVI. De novo nenhuma resposta. De concreto só os romeiros subindo à colina do Horto para agradecer auxilio recebido ou para pedir alguma graça ao padre, cuja estátua abençoa Juazeiro desde 1969, como o próprio Cícero fazia até 1934, quando morreu. Porém, a questão continua em pauta: seria santo ou embusteiro o homem que tocou o coração de grande parte dos brasileiros do Norte?


A autora, Janira Fainer Bastos, é articulista do JC

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