quarta-feira, 22 de julho de 2009

Uma (verdadeira) história do sertão de Pernambuco em pleno ano de 2009

Raimundo chegou cambaleante à entrada do bar de Seu Adamantino. A visão embaçada e o coração disparado fizeram sua mão vacilar ao se apoiar no trilho de metal sujo de graxa e areia da porta de ferro, exigindo um esforço ainda maior para que o corpo se elevasse sobre o degrau e, pé ante pé, chegasse ao balcão, no qual, com a cabeça rodando, ele suavemente colocou o facão ensangüentado. Minutos antes ele havia dali saído após entornar cinco doses de cachaça e não pagar a conta.

Josias, pastor da Igreja, em vão gritava a plenos pulmões tentando impedir a pequena multidão, liderada por Gilberto Jurema, que se organizava para ir atrás de Raimundo e cumprir seu objetivo. João Batista, atendente do posto de gasolina, noticiou à turba armada de foices que ele havia passado por ali, primeiro vindo de sua casa, andando rápido e falando sozinho, caminhando em direção do boteco de Adamantino, e que depois de algum tempo havia retornado, já meio de zigue zague, em direção à sua casa. Não teve coragem de informar que Raimundo já estava de volta ao bar, dessa vez todo manchado de sangue e quase não parando em pé.

A jovem Maria de Lourdes ouvia ao longe os gritos do povo que ia se aglomerando, sem saber ao certo o que estava acontecendo. Faltava-lhe coragem para retornar à casa. Raimundo já lhe havia desferido dois socos, um na cara e um no estômago, horas antes, além de tê-la ameaçado com uma espingarda. Ela fugiu e se escondeu atrás do barracão da oficina dos caminhões de transporte de cana. Ali ficara durante duas horas, chorando em silêncio, sem poder imaginar que o ódio de seu companheiro fosse atingir os limites da sanidade – conceito pouco compreendido por estas bandas.

A vizinhas de Raimundo e Maria de Lourdes continuavam paradas mirando o charco de sangue defronte à casa. Elas sabiam, mais por instinto que por entendimento, que aquela barbaridade que estavam a ver não estava certa.

Foi Gilberto Jurema que, mesmo com o braço ferido e ensangüentado, adentrou ao bar e derrubou, com um único golpe, Raimundo, fazendo-o lamber o chão de terra batida. Depois o serviço ficou a cargo da multidão que, sem enfrentar qualquer resistência do já resignado Raimundo Ribamar Fernandes, levou-o, arrastado, até a porta de sua casa.

Maria de Lourdes, do alto de seus 17 anos de vida, venceu o medo ao ouvir o som das vozes ao longe gritando xingamentos e blasfêmias contra Raimundo e saiu em disparada, ainda desesperada, tomando o rumo de casa. Ao ali chegar e perceber a desgraça, sentiu o corpo amolecer e caiu, a alguns metros do limite da poça de sangue. A visão, turva de pânico, a impediu de ver o momento em que Raimundo Ribamar Fernandes, de 23 anos, foi linchado, sem resistir, a golpes de facão e enxada, por uma multidão descontrolada. Seu sangue aos poucos encontrou a outra mistura de sangue e terra, de seus filhos, um de dois anos e outro de oito meses, que há pouco haviam sido por ele mortos, também a golpes de facão. O motivo, segundo depois afirmaria a jovem esposa-viúva e sem filhos à delegado, fora ela ter se negado a servir a seu marido naquela tarde de julho, no sertão de Pernambuco.

3 comentários:

Rosa Leda disse...

Você criou uma ambientação perfeita... as idas e vindas, a poeira, até o cheiro do suor sob aquele sol insuportável eu senti. Perfeito, Tiago! Parabéns! Adorei.
Bj

Rosa Bertoldi disse...

Isso é verdade ou ficção? O Pernambuco que eu conheço é um pouco mais civilizado...ou não?
DE qualquer forma fiquei arrepiada com o texto. Parabéns!
RosaII

mourinoul disse...

ah, por isso que ele não pagou a conta da cachaça!!!

Genial a abordagem jornalística.
Parabéns