sábado, 29 de agosto de 2009

Ele imaginou os tempos de Al-Andalus...


Eu não sou a única que pensa nesse acaso imprevisto sem paralelos, o argentino Jorge Luís Borges, autor de Aleph, também pensou... Leiam isso: “Escrevia com lenta segurança, da direita para a esquerda, mesmo aplicado em formar os silogismos e encadear os longos parágrafos, Ibn Rushd não deixava de sentir, sob a forma de bem-estar, a casa fresca e profunda que o cercava.” O filósofo, jurista e médico Ibn Rushd, ou Averróis, foi o principal comentarista árabe de Aristóteles, viveu e trabalhou em Córdoba. O parágrafo acima é de autoria de Borges e encontra-se A busca de Averróis. Sua produção literária é transpassada por uma circulação subterrânea de temas e figuras da cultura árabe-islâmica. Na opinião dele desenvolveu-se ali uma extraordinária aventura multicultural. Um momento de “grande abertura intelectual e respeito pela liberdade de opinião alheia.” A arte da conversação e intercâmbio são os traços dessa elite evocada por ele em sua obra. Mas, o al-Andalus de Borges não é o da história, nem o do realismo literário cujo objetivo seria a reconstituição de uma vida, uma biografia. O que está em jogo nessa ficção em primeiro lugar é a busca a que se dedica Ibn Rushd e depois, a tentativa de Borges de restaurar o filósofo em sua verdade mais profunda.
Considerando-se a época em que os fatos aconteceram, a pergunta que não cala é: será al-Andalus a terra idílica descrita por Borges? Não, pois aconteceram momentos de tensão, de perseguição, de censura. O próprio Averróis assistiu ao auto de fé de obras que tomaram parte de seu tempo, fruto de pesquisa e esforço imensos. É claro que existiam amigos fiéis, mas também o ódio tenaz dos medíocres.
No livro de Borges, Averróis tenta compreender o sentido de dois termos lidos em Aristóteles: tragédia e comédia. Como as palavras supunham o teatro, arte desconhecida na civilização árabe da época, ele como um prisioneiro de sua cultura, não poderia imaginar o significado delas, sem ter primeiro uma idéia da própria representação teatral. Talvez, Borges estivesse meditando e questionando se é possível conhecer a cultura alheia. Pois é... Toda reconstituição é alteração. Então, o significado do livro e dessa busca de Averróis é uma lição de Ética na medida em que procura o sentido da alteridade, da diferença, entender o outro, seja quem for esse outro. A ficção de Borges é uma das mais belas homenagens ao momento maravilhoso que foi al-Andalus.

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