Noventa anos é data para ser comemorada.
Dalila planejou tudo: os melhores salgadinhos, vinhos seco e frisante, tinto e branco, sucos, refrigerantes e a cerveja para Danilo. As taças todas sobre a mesa , gelo no baldinho e whisky, afinal alguém poderia ter mudado de gosto, a porcelana polonesa herdada da mãe, a toalha usada só nas grandes ocasiões e os guardanapos grandes, impecáveis, de linho com monograma bordado à mão.
Convidara os quatro. Quem viria?
Lucy chegou com o mesmo vaso de sempre, o mesmo perfume, o mesmo sorriso e a mesma desculpa: não poderia ficar muito. De ano para ano só mudava a razão. Desta vez era porque Enzo chegaria da Europa à noite. Estava linda e distante.
Danilo foi o segundo. Sorriu quando Dalila lhe ofereceu cerveja
– Estou ficando barrigudo, tia – disse. Um whisky, sim.
Os queijos estavam na mesa. Serviu-se sem olhar para Lucy à sua frente. Há anos não conversavam.
Celeste e Celso chegaram juntos. Desde pequenos os gêmeos eram muito unidos. Conversavam o tempo todo, viajavam com seus companheiros, eram até motivo de comentário. Inexplicavelmente unidos, nunca brigavam, gostavam das mesmas coisas e eram amorosíssimos com a tia. Trouxeram perfume, chinelo acolchoado, bombons e, num envelope, o convite para uma viagem com eles para Porto Seguro.
Dalila adorava os quatro. Sem filhos, sempre visitara muito os irmãos, e fora aquela tia querida que fazia os brigadeiros, enchia os balões, acudia cada amiguinho que se machucava, vestia-se de coelho, Papai-Noel e o que precisasse. Foi a confidente de todos eles, o refúgio e aconchego de todos. Independente, gostava de viver sozinha mas contava com os irmãos. Um a um tinham morrido e agora ela, sozinha, aos noventa, sentia um pouco de medo dessa solidão que fora sempre tão importante.
Programara tudo para hoje. Teria que ter coragem.
Tirou os salgadinhos do forno, repôs o gelo, Glen Miller no equipamento de som, os três primos conversando e Lucy folheando uma revista, parecia que tudo corria bem.
Confiante, Dalila aproximou-se deles e disse que precisava dizer uma coisa.
Celso, brincalhão, começou e os outros acompanharam:
- Discurso! Discurso! Discurso!
- Não é discurso, meus amores, mas é uma declaração. Tia Dalila está muito sozinha e velhinha. Chegou a hora de pedir um favor a vocês.
- Claro, tia, não é favor nenhum, sua vontade é uma ordem.
- Pára com isso, tiinha! A senhora sabe que fazemos tudo pela senhora. Pede!
- Eu tenho um pouco de medo...
- Já sei, a senhora quer autorização para namorar!
As risadas altas pareceram a Dalila um pouco nervosas. Talvez estivessem matutando sobre o que ela poderia dizer de tão importante... Seria a hora certa? Mas se não fosse agora quando seria?
- Bom, meninos, vocês vão ver que é um favor, sim. Não vou enrolar. Gostaria que um de vocês viesse morar aqui, comigo. Não quero deixar meu cantinho, não quero incomodar pedindo para ir para a casa de um de vocês e não posso continuar sozinha. Fiz exames recentemente, estou forte, não preciso ir para uma clínica, casa de repouso, nada disso. Poderia até contratar uma empregada para ficar à noite, durante o dia a Nina cuida de tudo mas à noite tenho sentido um pouco de medo. Pensei, pensei e não quero uma estranha aqui, enquanto durmo, tem tanto maluco neste mundo... Então quis propor a vocês. Não precisam responder agora. Pensem, mas não demorem muito. Está bom?
Olhou docemente para seus queridos meninos que, de olhos baixos tinham a fisionomia cerrada. Nada de risos, nem sorrisos, estavam claramente preocupados. Ela os conhecia tão bem!
- O primeiro que se manifestar será recebido de braços abertos. Além de não ter que gastar nada ainda vai ser presenteado, lógico, pelo grande favor que estará fazendo à titia... – Tentava manter o bom humor mas havia-se rompido alguma coisa.- Não se preocupem queridos, não é nada tão grave, não fiquem tristes. Vocês não haviam percebido que tia Dali estava velhinha?
Ofereceu mais bebida, buscou salgadinhos quentes, colocou música mais alegre na vitrola, buscou o bolo, cantaram parabéns, recebeu os abraços de felicitações e de despedida, recolhia os pratos e copos, e enquanto dobrava com carinho os guardanapos que iriam para a lavanderia, no dia seguinte, usava-os para enxugar as lágrimas mais tristes de sua vida.
Nunca tivera tanta certeza de sua enorme solidão.
Um comentário:
Rosa Leda conseguiu fazer um retrato que traça de qualquer pessoa a fase mais amarga da velhice. Foi feliz em armar situações tantas vezes ocorrentes para revelar a solidão, o abandono, a ausência de outro resultado na conduta dos mais próximos, ou se quisermos: o inevitável distanciamento. De modo preciso fotografou o lado mais saliente da aniversariante: o desejo de se fazer próxima. Rosa Leda conseguiu colocar a-pessoa-numa situação de tentativas vãs, inúteis, para amealhar a convivência dos seus. É difícil dizer, mas, a principal característica deste texto é a estrita fidelidade à realidade da vida, e nesse ponto, a tristeza e a lágrima são inevitáveis. Parabéns. Sérgio Rizzi
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