a memória fez questão de esquecer os primeiros anos.
aquela coisa da primeira palavra, da primeira vez em pé, do primeiro dente, sabe?
pra ele, nunca existiu.
sua primeira lembrança é um dia de chuva. o chinelo indo embora com a correnteza que lavava o meio-fio.
sua primeira perda.
sua primeira bronca também.
até sentia falta das broncas...
já às perdas, se acostumou. o tempo, professor dedicado, ensinou bem.
da partida de futebol ao primeiro amor, tudo se perde.
campeão mundial das derrotas do sentir.
título passado de pai para filho. gerações e gerações.
tudo era efêmero, feito suspiro de poeta.
como mecanismo de compensação (afinal, evoluídos somos), aprendeu a sonhar.
coisas pequenas, coisas grandes.
ei-lo, um sonhador.
escrevia canções tolas para aquecer noites de inverno.
imaginava rimas pobres para arrancar sorrisos de um amor de salvação.
abria a porta do carro. não destratava o garçom. elogiava o cabelo dela.
mas sonho abre o apetite, não mata a fome.
os amores não vieram.
o violão ficou encostado no quarto.
o caderno pintava as folhas de branco tipo sem inspiração.
vieram os anos.
a barba, branca, denunciava a esperança na uti.
visitas eram raras.
sorrisos, mais ainda.
até que, um dia, percebeu.
tinha pena dele.
não sentiam amor, tesão, simpatia, alegria, paz ao lado dele.
sentiam pena.
desse dia, ele se recorda.
bem demais até.
os sonhos tornaram-se esquizofrênicos, dignos de internação.
lembranças se embaralhavam, misturavam-se em sincronia mais-que-perfeita com o caos.
os olhos, opacos, fitavam o além-nada, logo ali, na esquina, perto do bar.
a boca seca perdeu-se pra sempre das palavras, elas que tanta companhia fizeram.
mas partiram.
subiram na boléia do caminhão com outros tantos.
procurando emprego em outras almas solitárias.
como a dele um dia foi.
sim, foi.
hoje, era uma alma esquecida.
deixada pra trás.
sobra de liquidação.
bons tempos aqueles da solidão.
regados ao gosto das lágrimas, ao sabor das paixões vencidas e ao cheiro forte da ilusão.
hoje, nos dias de esquecimento, o que restam são as silhuetas escuras manchando a parede verde-claro.
indecifráveis.
incompreensíveis.
indiferentes.
todas dele.
apenas dele.
2 comentários:
Definitivamente, odeio vc.
"Voo porque sonho, e sonhar é voar distâncias sem que o mundo perceba"
(às vezes, nem nós percebemos)
bjo, assessor!
Cada vez melhor.
Amo texto biográficos, principalmente os bem escritos, pois são melancólicos, contudentes, ao mesmo tempo que românticos e suaves.
A vida é assim, não é mesmo?
Muitas saudades tuas amigo.
beijoca e se cuida.
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