quinta-feira, 13 de agosto de 2009

tédio

ela cansou.
tinha enjoado da hipnótica programação da tv na madrugada.
bocejava com os dramas hollywoodianos - piratas e originais.
cansou do prazer solitário que se autooferecia nas noites de insônia.
tinha cansado do chá para dormir bem.
das vitaminas para a academia no dia seguinte.
dos lençóis que, cada vez mais, só tinham o cheiro dela.
estava cansada de se equilibrar nos saltos pela manhã.
de trazer os saltos na mão no fim de noite.
das estrelas brincando de esconde-esconde em suas madrugadas.
cansou. tadinha.
tava de saco cheio dos recados da irmã na secretária eletrônica.
do motel barato no qual procurava diversão gratuita.
nos drinks que prometiam fôlego com os dias contados.
fugia da promoção dos sentimentos: leve 2, pague 1.
contava as horas para o vizinho baixar o volume da novela.
os intervalos das trepadas.
as celebridades em decadência.
as lápides das alegrias que perdia pelo caminho - aqui jaz, aqui jazz.
se irritava com as letras do chico.
com a surdez de deus.
com o protesto silencioso das lágrimas que, militantes e barbudas, escorriam pelo rosto em dias alternados.
incorporou à rotina o trânsito, o cheiro do restaurante chinês.
a sinfonia dos ventos, a fumaça do cigarro.
o andar de miss, os olhares ao redor.
acostumou-se às bocas baratas que percorriam seu tesão.
a pagar pelas calcinhas lavadas.
à alma pálida, desbotada, manchada de molho inglês.
não ligava para os dias de chuva.
para a canção favorita que visitava o rádio.
para a dor que dilacerava o dia-a-dia.
cansou.
de esperar a bicicleta aos 7 anos.
o príncipe aos 14.
o sexo oral aos 21.
não ouvia o tique-taque silencioso do relógio da cozinha.
não ouvia o toque diário do desespero.
não tinha mais cócegas no pé.
ao acordar, não se olhava no espelho.
não pensava em frases de autoajuda.
não regava as plantas, nem as esperanças.
mentira: um dia, sentiu que precisava mudar.
fazer alguma coisa por si mesma.
flertar com a vida que cochilava no quarto de hóspedes.
teve preguiça.
mudou de idéia.
saiu pra dançar.
quando voltou, com o batom borrando a boca, não encontrou ninguém.
o quarto estava pequeno, repleto de ausência.
não havia bilhete de despedida.
nem cheiro no lençol.
nada. ninguém.
suspirou, aliviada.

3 comentários:

Rosa Leda disse...

Seu texto deixa sem ar, vai-se, num crescendo e volta-se ao mundo conhecido, ao conforto do mesmo.

Fernanda Miguel disse...

Não canso de falar: odeio vc!
(inebriante...como sempre)
;)

silvia disse...

Não canso de falar: odeio vc! [2]

Sabe o que eu ouvi na parte do "um dia, percebeu que deveria mudar"?

Uma música do Zé Ramalho que dizia "Para que serve a cobiça? Para viver infeliz".

Percebe que essa moça aí tava cansada de tudo o que ela não tinha?

Às vezes a gente se esquece de se cansar com o que tem. :)

Um beijo!