sábado, 10 de abril de 2010

O SAMBA DO CRIOULO DOIDO

Construção lembra modernidade. DESconstrução lembra pós-modernidade. Quando se fala em arte/decoração/design/arquitetura o termo empregado para essas manifestações é moderno. Da música diz-se contemporânea. Longe de ser popular, ela atinge um público restrito.
Em uma ida a São Paulo entre Bienal e Neurópolis escolhi a segunda opção sem pestanejar, afinal considero-me de vanguarda. A ópera urbana Neurópolis era o mais recente trabalho de Tragtenberg. O artista foi contratado para criar uma homenagem à cidade e apresentou na Galeria Olido uma orquestra bastante original. Convidei uma amiga para o sarau. Freqüentadora assídua de bons espetáculos, ela foi logo avisando com certo desdém: vanguardista, ouvi dizer que o sujeito é muito esquisito.
A música contemporânea utiliza várias técnicas estruturais, linguagem modal, serial, aleatória, politonal, atonal, estridências, ruídos, sistemas de notações não convencionais com crescente caráter gráfico. Hoje esses músicos usam até computador e outros aparelhos eletroacústicos, é muito esquisito mesmo.
Como convidadas, nossas cadeiras tinham uma posição privilegiada, mas tanto a minha filha quanto a minha amiga Lenita abriram mão dos lugares numerados para ficarmos na última fileira, imaginando que se o negócio fosse realmente muito estranho sairíamos despercebidas. Quando o palco iluminou levei um susto. À direita estavam sentadas duas japonesas com roupas e instrumentos típicos, um deles parecendo um tear na horizontal. Em pé, ao lado delas um clone do Carlinhos Brown, lógico com um birimbau...
Percebi que havia dois repentistas e dois violeiros paraguaios. Todos em traje a rigor, alguns até parecendo absolutamente normais, menos o regente que vestia uma calça de brim caqui e camisa de algodão, criando um contraste...esquisito? Minha filha apontou para o velhinho negro e comentou: aquele senhor toca cavaquinho em frente ao Teatro Municipal.
Pensei... Neurópolis, uma ópera urbana ou o samba do crioulo doido?
A orquestra formada por músicos que tocavam em feiras livres, nas ruas, portas de igrejas, praças, estações de trem, metrô e de diferentes comunidades de imigrantes com suas melodias tradicionais e instrumentos típicos tornou-se o ponto de partida para a criação de Livio Tragtenberg e Fábio Tagliaferri para a ópera. Imaginem birimbau, acordeon, harpa, violão, cavaquinho, flauta e violino misturados a diversos instrumentos que como desconheço, não posso nomear. Por incrível que pareça, a mistura funcionou, conforme o proposto. A sinfonia urbana era um diminuto espelho da miscigenada São Paulo. O espetáculo começou e eu vibrei, pois à medida que o ouvido se abre, a percepção ganha em acuidade e diferentes graus de audição se desenvolvem. Em nossa sociedade saturada de sons, o prazer de uma verdadeira descoberta musical torna-se maravilhosa, porque cada vez mais rara. “Amo o que nunca existiu” dizia o pintor francês simbolista Odilon Redon, convidando-nos a continuar explorando os caminhos da descoberta. A pós-modernidade caminha na contra-mão do modismo. Ser contemporâneo é inserir-se plenamente na época em que se vive – tarefa da qual não se pode escapar não é Rosa Leda? – e ao mesmo tempo, libertar-se de códigos e convenções. Tragtenberg ao quebrar a hierarquia entre a música culta e popular, não só mostrou o grau de seu vanguardismo, como abriu caminho para a revitalização da musica em geral. Em tempo: minha amiga aplaudiu de pé.

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