quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O moralista e o geômetra.

Muitas de nossas ilusões acerca da existência estão relacionadas intimamente às tentativas de compreender e analisar os sentimentos e impulsos humanos com base em critérios morais e religiosos. A avalanche de possíveis sentimentos brotados na mente do homo sapiens acaba sendo, segundo esse método de análise, sempre observada em conexão com uma escala valorativa, que vai da mais ignóbil baixeza à mais alta e pura nobreza de sentimentos.

Num exemplo, podemos apontar numa extremidade a inveja e na outra a ânsia por justiça. Mesmo se tratando de dois substantivos abstratos de definição extremamente difícil, sabemos que se trata de sentimentos tipicamente humanos, muito embora as concepções da moralidade teísta vinculem uma às profundidades daquilo que se poderia chamar de inferno e outra à mais sagrada inspiração divina. A primeira seria a quintessência do reprovável no que tange à humanidade, enquanto a outra, por sua essência sagrada, poderia ser vista como a prova de que o homem fora realmente feito à imagem e semelhança de Deus.

Todavia, é de grande valia a percepção de que alguns dos elementos direcionadores da interpretação acerca da inveja e da justiça estão intimamente ligados por suas características, por assim dizer, geométricas. De certo modo, tanto a justiça quanto a inveja raciocinam de maneira geométrica, valendo-se da percepção de que algumas coisas sobram à alguns, enquanto outras coisas faltam aos outros. Independentemente da ocorrência de uma análise quantitativa ou qualitativa, o olho do intérprete enxerga e percebe a ocorrência de um desequilíbrio (real ou imaginário) no mundo dos fatos, surgindo daí um desejo de recolocação das coisas nos eixos, de reequilíbrio. Tanto o invejoso quanto o justiceiro buscam devolver ao universo a harmonia perdida com a ruptura da igualdade inicial. Por mais que a inveja tenha uma caráter destrutivo e a justiça se baseie na busca por um reequilíbrio construtivo, não se pode negar que ambas tem aquilo que poderíamos chamar de modal geométrico de pensamento, no qual a abstração recebe uma interpretação concreta, que facilita sua compreensão.

Curiosamente a análise semiótica das deusas da justiça, seja ela grega, ou Diké, ou romana, a Iustitia revela sempre uma balança em pelo menos uma das mãos. A idéia de igualdade, retribuição, ison (de onde surge, por exemplo, isonômico, isonomia) se mostra, desta forma, historicamente vinculada a idéia do justo. De modo parecido, nossa concepção de inveja também se relaciona com a idéia de uma pretensa igualdade, ou pelo menos de desfazimento de uma desigualdade (ainda que totalmente merecida).

Essa conexão entre dois sentimentos tão antagônicos, deixa claro que todo o esforço realizado pela humanidade para compreender a si mesma tem nuances bastante curiosas, muitas vezes frutos de leituras teleológicas, ignorando a profunda ligação que pode estar presente nas mais completas e complexas interpretações do bem e do mal.

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