domingo, 23 de janeiro de 2011

"Tanto maior foi meu engano"

Com certeza ninguém duvida que Hamlet, de William Shakespeare, seja um dos textos teatrais mais belamente escritos de todos os tempos. Denso mas acessível, romântico e cruel, seu protagonista já foi vivido tanto nas telas quanto em palcos ao redor do mundo por muitos atores. Eu sempre tive amor ao doce príncipe que na tentativa de desmascarar a armação que levou a seu golpe de estado se finge de louco e apronta várias no processo. Sim o tema central e básico de sua trama é um golpe de estado, afinal após a morte/assassinato de seu pai, o príncipe não vai ao trono e sim vê este ser tomado por seu tio, o vilão e assassino de seu pai que não satisfeito se casa com sua mãe.
Mas porque estou aqui explicando tudo isso? Porque adoro a peça e acredito que ela tenha muitas camadas e nuances e porque acreditem ou não, esta peça de teatro sobre um golpe de estado onde nenhum personagem sobrevive ao final, é um desses livros que me dão alegria quando preciso. Um dos tais livros de cabeceira.
Amo Hamlet e sua densidade e a força com que ele vai contra o mundo a sua volta em busca do que acredita ser o certo e o quanto em sua batalha pessoal abre mão de coisas e pessoas queridas.
Como Ofélia. Certa vez fui fantasiada de Ofélia em uma festa a fantasia. Ninguém entendeu, todos acharam que eu estava de Julieta, graças a notoriedade da mesma, e parte por causa do vestido vinho com ares de Globe. Levava flores murchas comigo. E mesmo assim ninguém entendeu.
Ofélia na peça infelizmente não tem a densidade psicológica de Hamlet, e vamos combinar que mesmo sendo Shakespeare aquela não era a época em que autor dava densidade psicológica a personagens femininas até porque ninguém esperava densidade alguma vinda das mulheres.
Então no texto ela é uma vítima doce e infeliz das circunstâncias, que desavisada vê seu príncipe encantado se metamorfosear em um louco que não mais toma banho. Ela só tem o azar de estar ao lado de Hamlet durante a passagem do tsunami, não sendo poupada, até porque chega a ser usada como arma pelo pai e tal e tal....
Mesmo com todo o amor que nós leitores podemos acreditar que Hamlet sinta por Ofélia, e nisso tiro o chapéu para o filme de Kenneth Brannagh porque a platéia consegue ter essa certeza com gestos simples e sinceros vindos dessa ator que viveu com magnitude o dinamarquês.
Mas por que isso tudo, você ainda se pergunta?
Porque no texto há uma cena, a primeira do terceiro ato, quando Ofélia, a pedido de seu pai, vai ao encontro do atormentado príncipe, que após abrir seu coração estraçalhado a bela jovem, em meio ao seu embate pessoal percebe o esquema e reage.
A moça vai de coração aberto fazer uma das tarefas mais dolorosas de ex amantes, devolver presentes que tiveram significado e é recebida por um príncipe...
Bom, e nesta cena está uma frase que de vez em quando me ocorre no meio do dia ou da noite por sua densidade, verdade e dor... engraçado como um tempo verbal pode dizer tão mais do que mil palavras.

Abaixo segue parte do texto, um clip de uma versão estranha porém interessante de Hamlet com Ethan Hawke (2000) e a sensacional de e com Kenneth Brannagh (1996).
Espero que aproveitem.

"Ofélia: - Alteza, tenho comigo alguns presentes teus
Que há muito tempo desejava devolver.
Eu te peço que os aceite agora.

Hamlet: - Não, não eu.
Eu nunca vos dei nada.

Ofélia: - Honrado príncipe, sabes muito bem que sim,
E com eles, palavras tão docemente perfumadas
Que os enriqueceram ainda mais. Mas, agora que esse perfume se perdeu,
Aceite-os de volta. Para alma nobre
Os presentes mais ricos perdem seu valor, quando cruel se mostra o doador.
Aqui estão, alteza. [entrega os presentes]

(...)

Hamlet: - Certamente. Pois o poder da beleza logo transformará o que fora castidade em alcovitaria, ao invés da força da castidade tornar a beleza em virtude. Isso outrora foi um paradoxo, mas os dias atuais provam que é verdade. Eu te amei um dia.

Ofélia: - De fato, alteza, me fizeste acreditar que sim.

Hamlet: - Pois não devia. A virtude não pode se enxertar tão profundamente em nosso velho tronco sem que nos sobre sequer algum perfume dele. Eu nunca te amei.

Ofélia: - Tanto maior foi meu engano."






Um comentário:

Thiago Azevedo disse...

ADOREI.
Li Hamlet quando estava com uns 20 anos e nao pude absorver toda a densidade da obra. Voce me fez ter vontade de ler novamente.
Um beijo.