quarta-feira, 4 de agosto de 2010

MATERNIDADE E TORPEZA

Um Roteiro de Cinema


Uma jovem senhora, dançarina de flamenco e enfermeira, se envolve amorosamente com um paciente de certa idade, dono de uma imensa fortuna. Casam-se. Ela, por volta dos 50 anos. Ele, com 67. Os filhos, por impedimento da idade e da época, não surgem. Ele morre, e deixa toda sua fortuna – um império de comunicações e empresas alimentícias e financeiras - para sua adorada e devotada esposa.

Alguns anos se passam e a nova poderosa-milionária acaba adotando um casal de crianças, Marcela e Felipe, as quais lhe são entregues pelos respectivos pais biológicos em decorrência da pobreza e falta de perspectivas. Ela, muito feliz, aceita as crianças como suas. Dá educação, conforto, segurança e amor de forma inquestionável. Prepara as crianças para o mundo e para a vida. Torna-se verdadeiramente uma mãe. O casal de filhos cresce como príncipes, nas colunas sociais da América Latina. E em momento algum colocam em xeque a reputação da caridosa mãe.

Mas a história não continua “feliz para sempre”. Algumas pessoas, após muito tempo, levantam suspeitas sobre as reais circunstâncias da adoção do casal de crianças. Apontam para a mãe adotiva indicando a possível ocorrência do furto dos dois enquanto ainda bebês. A mãe chega até mesmo a ser presa, e a história vai ficando cada vez mais e mais confusa.


História Real


O caso acima até pode parecer um roteiro bem barato de melodrama. Mas não é. E seus verdadeiros capítulos são bastante horripilantes. Afinal, trata-se de uma história real cujos capítulos ainda se desenrolam na vizinha Argentina.

Felipe e Marcela Herrera Noble foram adotados no ano de 1976 por Hernestina Herrera Noble, viúva de Roberto Jorge Noble. O marido fora em vida o proprietário do Grupo Clarín, controlador do maior jornal impresso do país, que há cerca de 50 anos permanece como líder de mercado. Atualmente, o Grupo Clarín controla, além do jornal, dois canais de televisão, duas empresas de televisão por assinatura, portais de internet, bem como inúmeras outras empresas, dentro e fora da Argentina. Este império das comunicações faz com que Hernestina Noble e seus herdeiros, Marcela e Felipe, uma das famílias mais ricas do país.

Ocorre que, há cerca de onze anos, a organização das “Mães e Avós da Praça de Maio” (que busca até hoje os filhos dos desaparecidos da ditadura argentina) afirma que Marcela e Felipe podem ser filhos de desaparecidos políticos. Eles teriam sido roubados ainda bebês de seus pais biológicos, logo após o nascimento, enquanto os pais teriam sido levados pelos chamados vôos da morte (nos quais os perseguidos políticos eram jogados vivos de aviões em alto mar). Ao total, estima-se que 30 mil pessoas teriam desaparecido nos 5 anos de ditadura na Argentina, enquanto cerca de 500 crianças teriam sido roubadas, assassinadas ou deixadas em abrigos sem qualquer registro de seus pais biológicos.

Realmente, a versão oficial da história da adoção, segundo contada por Dona Hernestina, é bastante confusa. De acordo com os documentos daquele período, em 13 de maio de 1976 ela teria se apresentado diante da Justiça, no bairro de San Isidro, em Buenos Aires, com um bebê supostamente chamado Marcela. Afirmou, à época, que havia encontrado a criança onze dias antes dentro de uma caixa de papelão, abandonada à porta de sua casa. Curiosamente, no dia 7 de julho do mesmo ano, Dona Hernestina retornou à Justiça, dessa vez com um menino, chamado Felipe. Afirmou que ele lhe havia sido entregue pela mãe, Carmen Luisa Delta, que alegava não poder cuidar do bebê.

No ano de 2001 os depoimentos das testemunhas do abandono da suposta Marcela foram desmentidos judicialmente. No mesmo ano, comprovou-se que a suposta mãe biológica de Felipe, Carmem Luisa Delta, nunca existiu.


A possível e Tenebrosa Versão


É bastante provável - e aqui entra a tendência a romancear os fatos típica de todo protótipo de escritor - que as crianças tenham sido entregues à Dona Hernestina (uma senhora sem filhos, solitária e poderosa) como forma de recompensa pelos serviços prestados por seus veículos de comunicação à Ditadura do General Jorge Vidella.

Na realidade, segundo afirma a organização das Mães e Avós da Praça de Maio, Marcela seria filha de Bárbara Miranda e de Roberto Lanuscou, militantes da Guerrilha Montoneros, mortos por um tiroteio com militares em 1976. Felipe, por sua vez, seria filho de María del Carmen Gualdero, seqüestrada em junho de 1976, quando estava prestes a dar à luz, e desaparecida depois de ter sido levada para uma prisão clandestina em Buenos Aires. Caso sejam comprovadas as acusações contra Dona Hernestina, ela, hoje com 84 anos, pode ser presa.


A sedução do dinheiro


Não deixa de ser curioso o fato de Felipe e Marcela não concordarem com a realização de um exame de DNA. Afirmam não poderem admitir que “eventuais divergências políticas” entre o Grupo Clarin e o atual governo de Cristina Kirchner façam deles joguetes políticos e prejudiquem a mulher que consideram sua mãe.

Não obstante, é evidente que, caso comprovado que são realmente os filhos dos desaparecidos políticos da ditadura argentina, aceitar a gigantesca herança que lhes é de direito será de péssimo tom, pois seria lucrar com os mais abjetos e desprezíveis atos humanos: matar alguém e roubar sua cria.

A batalha jurídica nos tribunais argentinos, ao que tudo indica, terá solução nesta semana.

Um comentário:

Rosa Leda disse...

Thiago querido, que bom que voltou! Por favor coloque-nos a par dos próximos capítulos. Você criou um suspense e tanto com notícia de jornal. Que inveja! O Moacyr Scliar faz isso também. É um dom. Beijo