Quando o caminhão de mudança parou em frente à nossa casa tivemos certeza de que afinal a casinha do outro lado da rua seria habitada. Estava vazia há meses.
Mês de férias, sem muito o que fazer a meninada sentou na calçada para analisar a mobília e, principalmente para ver se chegaria com a mudança alguém da nossa idade.
Hoje provavelmente ninguém estaria na calçada mas no clube, diante da TV, vendo um filme, no computador ou no acampamento... Naquele tempo as férias eram na rua, mesmo. A programação da televisão começava às 6 da tarde, cinema só no domingo, clube era luxo, computador não existia e acampamento não fazia parte do nosso mundo.
Voltando à mudança, vimos descarregarem móveis que nenhum de nós tinha em casa: hoje sei que o nome é bergère, mas classificamos como um trono vermelho e dourado, um tapete de zebra lindo que os carregadores desenrolaram e enrolaram na calçada, caixas e mais caixas com panos coloridos, um espelho gigante em moldura dourada e um móvel enorme- outro conhecimento que não tinha à época- um étagère, também dourado.
O sofá, mesinhas, cadeiras, tudo era conhecido mas não como aqueles...
Encantados com tantas novidades chegamos às alturas quando um Chevrolet 52 azul, reluzente, estacionou e um senhor de terno marron e gravata listrada largou a direção apressadamente para abrir a porta do passageiro e de lá desceu dona Anita.
Risadas, cutucões e agitação. Ela era a mulher mais esquisita que já havíamos visto. Primeiro, porque usava na cabeça um lenço estampado que dava várias voltas no pescoço e caía atrás, depois porque seus óculos eram enormes mas principalmente porque usava casaco de pele e eram 11 horas de uma manhã de janeiro.
Andou sem olhar para nós, com a delicada mão do homem em seu cotovelo, diretamente para o portãozinho da casa e para nosso delírio descobrimos que por baixo do casacão usava uma saia tão justa que não conseguia subir o degrau alto. Ficou de lado, apoiou no muro, ele empurrou, mas nada! Não havia ângulo para dobrar o joelho dentro daquela saia.
Ficamos todos em pé para ver melhor, torcendo para que a situação piorasse. Infelizmente não piorou. O homem às suas costas levantou-a pela cintura e praticamente a empurrou para dentro ouvindo nossas gargalhadas.
Como a parte melhor já acabara, e era hora de comer, fomos para casa contar as novidades.
À tardezinha nos juntamos novamente. O caminhão partira, o Chevrolet na garagem, o homem subia e descia de uma escada para colocar cortinas, e tudo parecia muito plácido.
De repente ela apareceu no corredorzinho do lado.
Era muito feia! Cabelo azul, velha, com batom vermelho e “rouge”. Figura estranha. Não parecia com ninguém do bairro: as avós não usavam batom vermelho nem cabelo armado, as mães não usavam aquelas roupas e nem eram velhas.
As mulheres da rua também foram aparecendo. Uma ia à padaria, outra tinha ido xeretar mesmo e outra estava de passagem para a casa da mãe. Pararam e resolveram cumprimentá-la, dar as boas vindas.
Atravessaram a rua e foram acolhidas com o melhor sorriso do mundo.
- Ah, queridas, muito obrigada!
- A senhora morava por aqui?
- Não, eu tinha um apartamento na rua Paim, mas decidimos morar numa casa. Esta é perfeita, do tamanho que precisamos.
- A senhora tem filhos?
- Não, meu amor, sou recém casada... ainda não deu tempo. Apareçam, vamos conversar, apareçam!
No dia seguinte ela lavou a calçada e molhou o jardim de short. Um escândalo!
Quando foi à padaria de pijama e casaco de pele, o bairro já fervia.
À tarde as mães descobriram - ela era vedete. Ou melhor, ex-vedete. Aposentada.
Participara de alguns filmes com Mazzaropi e ainda fazia bicos na rádio Record.
Ouvi meu pai dizer para tomarmos cuidado, era uma mulher perigosa.
As mães, fascinadas, queriam saber de tudo. Aos poucos e sem muitos rodeios ela foi contando. Tivera muitos amantes. Fora muito apaixonada, mas ninguém a pedira em casamento. Amiga da Virgínia Lane, convidaria todas para um chá quando ela viesse de visita.
Ia montar um salão de beleza. Adorava casacos de pele. Tinha muitos, ganhos de amigos e admiradores.
Seu marido? Ah, seu marido era o “seo” Garcia, gerente da Pirani. Viúvo sem filhos sempre fora apaixonado por ela, desde moços. Os pais não o deixaram casar com uma moça à toa. Só quando os pais morreram começaram a namorar. E viveram amorosamente até a morte de “seo” Garcia uns 15 anos depois.
Ela se tornou a melhor cabeleireira/conselheira do bairro. Continuou a usar casaco de pele só com calcinha, sobre o pijama ou para conversar no portão.
Foi no colo dela que chorei a perda do meu primeiro amor.
4 comentários:
Rosa:
Vc pode me contar onde morava? Ah, como eu queria ter uma vizinha dessas. Amei!!!!!!!!!
Bjs
Rosa
hoje eu moro num hall de pouco mais de, creio eu, 10 metros quadrados. são quatro portas. a minha, mais três. todas estão sempre fechadas. não sei o nome de nenhum dos seres humanos que habitam atrás de nenhuma das outras três portas.
sabe o pior de tudo?
acho esse "anonimato" uma delícia!
Eu era menino, obsedado por nomes como Virginia Lane.Impressionava-me muito as fotos das coristas nos cartazes da Avenida São João. De vez em quando tentávamos olhar pelas cortinas da sala de entrada uma parte do show. A infância é intransferível, irrevogável. Belas lembranças. O texto é elegante, como elegante era a velha São Paulo.
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