sábado, 5 de setembro de 2009

Gilgamesh: das contas aos contos


“Salve Gilgamesh, Rei de Uruk, salve! Os deuses te criaram a perfeição...”
Há exatos dez anos vi a encenação do poema épico babilônico Gilgamesh considerado a primeira obra literária da humanidade. Foi elaborado a quase três mil anos em doze tábuas de argila, escritas em cuneiforme, onde estão colocadas as inquietações que sempre perseguiram o homem: o problema da morte, o significado da vida, a busca da imortalidade e a resignação diante do destino.
Gilgamesh, filho de uma deusa, é descrito como 2/3 deus e 1/3 homem. Dela herdou a beleza e dele a mortalidade. O poema apresenta relatos de conflitos sempre em forma literária. Uruk no sul da Mesopotâmia, situada a leste do rio Eufrates, teria sido o pano de fundo dos acontecimentos descritos. Suas muralhas e o templo dedicado a Ishtar foram construídos por ordem de Gilgamesh.
Pensei: a escrita nasceu da necessidade de fazer contas chegando aos contos. Uma simples maneira de ajudar a memória desenvolveu-se em forma e conteúdo ao longo de muitos séculos. Ajudar a memória é? Ainda bem, pois não consigo viver sem agenda.
Aos fatos, então... Há muito tempo na Suméria apareceu uma escrita pictográfica. Seu aspecto lembra os primeiros símbolos gráficos da pré-história e representam conceitos que devem ser interpretados para se constituir na mensagem. Depois vieram os sistemas fonéticos, cujos primeiros usuários foram os fenícios. Os especialistas garantem que eles são as matrizes de diferentes alfabetos fônicos empregados no mundo atualmente.
E tudo começou com Gilgamesh buscando a imortalidade? Acredito que não. As raízes dessa escrita estavam presentes na cultura antes dele, mesmo considerando-se a característica principal de Uruk, a criatividade.
As primeiras versões escritas dessa literatura apareceram junto com contratos e outros documentos econômicos. Nessa época os poetas, escritores e sábios esforçaram-se para fixar na escrita e divulgar obras literárias da tradição oral: hinos aos deuses, mitos, orações, ensaios filosóficos, textos eruditos e a epopéia de Gilgamesh, a obra mais difundida. Por volta de 2.000 a.c. essa língua desapareceu da região sendo substituída pelo acadiano, que se dividiu em dois dialetos, assírio e babilônio.
O declínio da escrita coneiforme se deu quando os arameus penetram na Mesopotâmia e trouxeram uma língua representada por meio de um alfabeto linear, fácil de aprender e utilizar, acessível a todos e possível de ser transposto em suporte leve, o papiro.
Acessível a todos? Nenhuma sociedade moderna pode ser vangloriar de 100% de alfabetizados ainda. Porém, a escrita nunca foi democrática. Surgiu como um instrumento do governo para categorias de especialistas. Ao fixar o costume de um suporte estável, impede pouco a pouco que esse produto espontâneo da consciência coletiva evolua com a sociedade, como a tradição oral permitia.
Tanto que nas sociedades ocidentais existe uma separação do discurso falado e do texto escrito, concebido para ser visualizado e não escutado. Essa evolução pode ter facilitado um retorno à imagem combinada ao alfabeto e os novos ideopictogramas tendem a provar isso. Seria uma escrita neo cuneiforme via computador ou algo como dos contos as contas?

Um comentário:

Rosa Leda disse...

Rosa, blog cultura é um must. Que delícia! Beijos